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quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O mar e as Paredes da Vitória

Como seria de esperar, desde sempre existiu uma relação conflituosa entre Paredes da Vitória e o mar. O Couseiro relata nas suas páginas que «esta vila se despovoou porque se descobriu grande penedia na baía, com o que não podiam vir a ela embarcações». Outras fontes referem um temporal que destruiu o porto e todas referem o grande assoreamento e o avanço das areias sobre o porto e a vila.
Paredes da Vitória na década de 1950. Atente-se às dunas existentes onde agora se situa a ETAR e o parque de estacionamento dos Mijaretes. Repare-se ainda na praia e nos diversos patamares da mesma, sinal da evidente de avanços e recuos do mar.


Outras histórias mais recentes contam-nos que no final dos anos de 1930, uma vaga gigante passou por cima da então recém-inaugurada escola, obrigando ao socorro das crianças e professora aprisionados dentro do edifício; ou a história dos dois porcos que morreram afogados no seu curral, numa casa que ainda hoje existe entre a marginal (bar nostalgia) e a Travessa do Jardim. Todos ainda se lembram que, durante todos os invernos – sem excepção – o mar subir o rio, galgar sobre as dunas e espraiar até à porta da marisqueira Tonico. São acontecimentos que fazem parte das memórias das Paredes e que nos fazem entender que há uma faixa de território continuamente reclamada pelo mar.
Vem isto a propósito dos recentes eventos que destruíram quase por completo a intervenção de requalificação da praia das Paredes, nomeadamente as paliçadas de fixação dunar, os passadiços de acesso à praia e o suporte da “varanda” na marginal.

É minha convicção pessoal que alguns dos problemas hoje existentes com a erosão e os galgamentos nas Paredes começaram há cerca 20 anos com a construção do “espelho de água”, em 1989/1990. Uma obra que pretendia trazer uma mais-valia à praia (nomeadamente em termos visuais), veio contribuir (como parece saber-se hoje) para uma maior destabilização do sistema praia-duna-arriba junto ao início da praia. O mar, que antes desta construção, não encontrava dificuldades em subir a pequena duna, passar pela escola e espraiar na estrada em frente ao Tonico Manel, viu-se assim impedido de o fazer. De alguma forma, foi “encurralado” pelo “espelho-de-água”, que não só o impediu de prosseguir até à estrada, como o obrigou a subir e ganhar volume em altura. O seu recuo, mais rápido e com maior volume de água, tem uma maior capacidade erosiva que se manifestou, pela primeira vez, de forma significativa, no final do ano de 2000, com a queda de uma barreira na margem norte do rio, junto às antigas eiras.

Paredes, ainda na década de 1950. No primeiro plano, as eiras, que acabariam soterradas pela abertura da estrada nova para a Senhora da Vitória. Atente-se à inexistência do edifício do atual bar "Nostalgia Beach", da atual marginal - conquistada à praia -, do largo leito do rio e de uma "boca" do vale muito mais ampla e aberta que a atual (o que ajudaria no espraiar das vagas e na diminuição da sua força). 
 
Desde então, quer a norte quer a sul, o processo erosivo tem-se acentuado. Curiosamente, desde as obras de requalificação (que, coincidentemente, elevaram em algumas dezenas de centímetros o nível dos arruamentos), nunca mais o mar galgou até à estrada.
Evidência dos estragos são o facto de, durante a década de 1990, a então marginal ter sido ameaçada pela erosão do mar. Para que isso não acontecesse, a Junta de Freguesia reforçou então a base da estrutura com um pequeno paredão, que evitou maiores danos.


Paredes da Vitória, no início dos anos de 1990. Atente-se à proteção da marginal com um enrocamento, após um ou dois invernos mais severos que acentuaram a erosão do local. Observe-se ainda a colocação das primeiras proteções dunares e as escadas em cimento de acesso à praia. A cota da praia parece baixa e homogénea até ao mar.
 

Esse processo de erosão foi também evidente na quantidade de areia na praia. Para quem se recorda da antiga praia das Paredes com o parque de campismo, parece-nos hoje que a praia é muito mais pequena. Embora não existam dados relativos à quantidade de areia que existia, parece-me que não deixa de haver uma pequena ilusão ótica quanto ao tema. Se olharmos com atenção para as fotografias, na verdade, grande parte do antigo parque de campismo é hoje ocupado pela ETAR, por parte da marginal e pela duna ganha à praia.
Mas há outra evidência desta diminuição, ou não, da quantidade de areia na praia. Depois desta última tempestade, ficou a descoberto a antiga escadaria de cimento e o que se constata é que agora, o nível da praia é semelhante ao de há 5 ou 6 anos.
O que nos leva a outra evidência: o excelente trabalho de fixação das dunas e das areias que tem sido feito (os registos mostram que essa preocupação vem já desde 1980, quando travessas de linhas de comboio foram utilizadas para proteger as areias).

Há 30 anos a separar estas duas fotografias. A primeira é de agosto de 1982 e a segunda de julho de 2012. São visíveis algumas diferenças, não só no ordenamento da praia e a consequente retirada do parque de campismo e a exist~encia dos concessionários, mas também ao nível do curso do rio. Junto ao mar, a praia parece efetivamente maior, mas este ano, a praia estava também mais curta que o normal.

Estamos então em condições de avaliar a real dimensão dos estragos feitos pelo mar há quinze dias atrás.
O investimento de cerca de 340 mil euros na requalificação da praia (a que se juntaram mais 1 milhão na requalificação do núcleo urbano e mais 2 milhões pela ETAR), traduziu-se no balizamento da praia, na construção de passadiços e na construção de uma paliçada de proteção dunar que ia do rio até ao início dos Mijaretes. Em cerca de 4 anos, essa paliçada aumentou em mais de um metro o nível de areia nas dunas.

Requalificação da praia de Paredes da Vitória. A fotografia é de novembro de 2008. São visíveis os passadiços de acesso à praia, os novos bares dos concessionários e as paliçadas de proteção às dunas.
Mas esta história não é só de sucessos.
Em outubro de 2010, uma tempestade destruiu parte da paliçada de proteção dunar. Na sequência, o rio saiu do seu leito normal e curvou para sul, iniciando um processo de erosão que culminou com o desaparecimento de toda a paliçada do rio até às escadas de madeira em frente do “Nostalgia Beach”.
1º facto: o desaparecimento desta paliçada e desta duna, tendo origem numa tempestade marítima, foi acentuado pelo curso errático do rio. Foi o rio quem acentuou a erosão e abriu caminho para futuras vagas do mar.
2º facto: apesar dos alertas, o curso do rio nunca foi corrigido. Apenas o foi no início do Verão e sempre com o objetivo, não de prevenir/corrigir uma situação de erosão mas com o propósito de melhorar as condições balneares da praia e dos concessionários.

9 de outubro de 2010
25 de março de 2012

A verdade é que depois dessa data, nenhuma obra de manutenção/ recuperação do cordão dunar foi feita. A exceção é a reconstrução de uma das escadarias para acesso à praia, no início do verão.
Como se não bastasse essa ausência total de prevenção, no início deste verão, com o alegado argumento de preparar a praia para a época balnear, uma intensiva e extensiva movimentação de areias reduziu e rebaixou a cota da praia em mais de um metro. Também na altura foram alertadas as entidades mais próximas (Câmara e Junta) de que essas alterações no perfil da praia seriam contraproducentes, podendo levar à destruição do cordão dunar em futuras tempestades de Inverno. Mais uma vez, foi referida a necessidade de corrigir o leito do rio e apontadas algumas possíveis soluções. Aparentemente, nada foi feito.

Intervenção na praia das Paredes em Junho de 2012. Entre outras ações, a praia foi rebaixada em mais de 1 metro, expondo totalmente a paliçada que em troços significativos estava quase totalmente enterrada.

3º facto: o leito do rio não foi corrigido e, mais importante, não foi estabilizado. Terminado o verão, e impelido pelos ventos dominantes de Norte-Noroeste, curvou para sul e continou a erodir a base da duna.
4º facto: no final do verão, o nível da praia era substancialmente mais baixo que no verão (devido à movimentação de areias).
5º facto: cinco dias consecutivos de grande agitação marítima, com vagas de 6 metros conjugadas com as mais altas marés.

É a conjugação de todos estes factos e elementos, de origem natural e antrópica, que a diferentes escalas e em diferentes momentos têm contribuído para o estado atual da praia.

Paredes da Vitória, a 20 de dezembro de 2012. Suporte da "varanda"de madeira. Apesar dos sucessivos avisos e chamadas de atenção, nenhuma intervenção foi feita e a ação conjunta do leito do rio e das marés-vivas acabaram por expôr totalmente as fundações.
Paredes da Vitória, a 20 de dezembro de 2012. Acesso à praia a partir do "Nostalgia Beach". Observe-se a descoberto a antiga escadaria, reveladora não só da altura da cota da praia como do seu limite.

Por um lado, não podemos negligenciar a maior agitação marítima no inverno e a influência das marés. Para além disso, há o grande movimento de areias, evidente nas diferenças de areal entre o verão e inverno. Há ainda o rio, cujo curso é fortemente influenciado não só pelo mar e pela respetiva movimentação de areias, mas fundamentalmente pelos ventos dominantes. Todos conjugados, explicam os cíclicos e normais galgamentos do mar durante o inverno.
Por outro lado, há as construções de proteção dunar, cujo objetivo é o de criar uma barreira natural a estes galgamentos e trazer a maior estabilização possível à praia. Mas há outros aspetos a considerar na intervenção antrópica. A ausência de trabalhos de reparação e prevenção e, fundamentalmente, intervenções descabidas de movimentação de areias na praia, nomeadamente as que diminuem a sua cota, têm sido os principais fatores de destabilização deste frágil e dinâmico sistema e potenciaram de forma exponencial os estragos causados pela agitação marítima e os (normais) galgamentos.

A praia de Paredes da Vitória está assim necessitada de uma intervenção urgente, a executar nos próximos cinco meses – antes do início da época balnear.
Por um lado, são necessárias obras de reparação: passadiços de madeira, escadarias de acesso à praia, paliçadas de proteção dunar.
É necessária ainda uma obra mais pesada de proteção à marginal e à respetiva “varanda” e, principalmente, de orientação e de fixar de forma definitiva uma parte do curso do rio (após o espelho de água).
Tendo em conta o valor da intervenção inicial, aquando a requalificação da praia, provavelmente esta intervenção será de algumas dezenas ou até centenas de milhares de euros.
Há ainda que equacionar e discutir sem preconceitos e sem constrangimentos o que é mais importante – e já agora -, o que é mais sustentável de ponto de vista ambiental mas também económico, para a praia das Paredes. Longas intervenções de duas/três semanas de movimentações de areias na praia têm de ser muito bem fundamentadas e nunca, nunca, poderão pôr em causa o equilíbrio deste sistema mar-praia-duna. Estas intervenções feitas sem critério – e parece que a pedido – são uma das principais causas da situação atual. Quanto custaram na altura e quanto custarão agora, para resolver os problemas enunciados? Qual foi o retorno direto e indireto dessas intervenções? Traduziram-se num benefício geral para a praia e para o município? Como já disse, é necessário equacionar sem preconceitos, nem pressões, todas as variáveis e decidir.
E cabe aqui a última palavra: decidir.
É necessária uma decisão baseada em argumentos válidos, racionais e técnicos. Algumas das questões apresentam dificuldades técnicas que não podem ser resolvidas com o «penso que» e «acho que». De qualquer forma, há algo que não pode ser negligenciado: o conhecimento da população local, que pela sua experiência de vida tem conhecimentos sobre a praia e o mar que não vêm nos livros. Seria bom também, que depois de equacionadas e fundamentadas as ações a concretizar, apresentá-las à população local e ouvir a sua opinião, e eventualmente, corrigir, ou não, alguns aspetos. Mas essa seria uma novidade, pois a população das Paredes nunca foi ouvida uma única vez em todas as intervenções que ali foram feitas.

6 comentários:

  1. Embora o Couseiro seja uma grande fonte de informação histórica, não acredito na história da penedia. O porto foi utilizado durante mais de 200 anos, e nunca tinha sido nada descoberto. No séc. XVI a penedia é supostamente descoberta e o porto deixa de ser utilizado? Não tem grande logica, onde já à mais de 200 anos vinham embarcações ao porto.
    Existe ainda uma outra fonte que atribui a decadência ao terremoto de 1531, mas como se sabe a decadência já vinha de muito antes e para além disso é uma zona de areias, o que acaba por ter fracas consequências. O temporal já tem alguma lógica, mas mesmo assim o mais lógico é factor obvio do assoreamento. Se formos bem a ver, a Muralha do sitio da Nazaré (erguida 1750) foi erguida com o propósito de proteger os habitantes das areias. Mas cada fonte histórica tem a sua versão, e cada uma tem o seu devido valor. O que falta é um Medievalista a estudar as Paredes, e saber qual a verdadeira causa.

    Para variar mais um belo trabalho feito :)

    Um abraço

    Tiago Inácio

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    1. A referência ao Couseiro surge apenas como um elemento de referência histórica. De resto, estou de acordo contigo quanto à (ine)exatidão do mesmo no que se refere ao fim do porto de Paredes.
      Pessoalmente, penso que houve uma conjugação de dois fatores que terão levado ao declínio do porto:
      1º - o assoreamento do mesmo durante a segunda metade do séc. XV até meados do séc. XVI. Na região, na mesma altura, as lagoas da Pederneira, de Alfeizerão e de Óbidos tiveram também um grande assoreamento. Ora, sendo o vale de Paredes muito mais pequeno, esse assoreamento teria sido muito mais rápido. Mas para confirmar esta tese seria necessário fazer um estudo geológico do fundo do vale e da própria praia.
      2º - É relativamente seguro confirmar a existência do terramoto de 1531 e aceitar a existência de uma grande tempestade que teriam destruído parte do porto, e quem sabe, até parte da fortaleza que o protegia.
      Será fácil juntar os dois elementos e justificar a decadência do porto de Paredes.
      Mas como dizes, isto são apenas especulações.

      Abç

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  2. Parabéns pelo excelente trabalho!
    resta agora esperar pelas obras, mas com a atual falta de verbas....vamos ver!

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    1. Nunca se sabe Carlos, nunca se sabe.
      É preciso não esquecer que 2013 é ano de autárquicas...

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  3. Uma boa Dissertação.
    Está aqui informação para que os tecnicos quer da CMA (em que há alguns que nem sabem onde fica), quer para os da ARH do Tejo que têem os livros mas falta-lhes o conhecimento do saber das gentes desta terra, possam utlizar.
    O mar quando visitava o Tonico Manel era sempre de noite e as pessoas nunca o viam.

    Àrrã da Lagoa

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  4. Por acaso descobri este mapa inglês de 1800 na net e gostaria de partilhar, reparem no pormenor do porto das paredes .
    Alguma vez fizeram escavações na zona das Paredes Velhas/zona dos moinhos ? É que parece-me que o cais era mesmo ai !


    http://farm2.static.flickr.com/1118/943171940_597f1369e1_b.jpg

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